A medicina está crítica!
"O desencantamento com os cuidados de saúde no final do séc. XX também afectou profundamente o curso da história da medicina. Críticos da medicina moderna e tecnocrata atacaram as prerrogativas de uma elite médica profissional, ao mesmo tempo que condenavam o carácter desumano do tratamento médico moderno."
Desencantamento, tecnocracia, elitismo e desumanização. Mais que quatro ideias-chave expressas por Mary Lindemann em Medicina e sociedade no início da Europa Moderna, aquelas são quatro realidades das enfermarias dos nossos hospitais. E vem aí a nossa vez, não de adoecer (também chegará!), mas de curar. A nós compete recolocar o doente no centro da profissão médica, um lugar agora ocupado pela doença, e assim humanizar os cuidados de saúde.
Este blog é criado com o objectivo de facilitar a partilha de informação, ideias, experiências, opiniões, leituras (artigos, crónicas, livros...) e tudo aquilo que sintam que nos possa ajudar a, efectivamente, construir uma geração médica mais próxima do doente. Colabora!
Eu começo hoje, com a publicação de uma crónica do Eduardo Prado Coelho, antigo professor universitário, recentemente falecido: Memórias de Santa Maria (2).
"Meu caro Correia de Campos, amigo e camarada:
Continuemos a nossa conversa. O tal corredor à esquerda de que já falei conduzia ao Serviço de Observações, que não me deixou boas recordações. Há uma espécie de princípio: "Ó vós que aqui chegais abandonai tudo o que pertencia ao mundo." Um despojamento total. Tire a roupa: anotam peça a peça e amarrotam-na cuidadosamente em sacos que não têm pegas, para dar ao acompanhante que espera lá fora. Depois disseram: "Tire os óculos." Respondi: "Não tiro." A seguir o relógio. E segundo o regulamento, deveria entregar o telemóvel. Recusei. Por fim, o livro que levava comigo. Segundo o regulamento, não se pode ter livros! É assim que pretendem fomentar a leitura? Recusei entregar os Doidos e Amantes da Agustina Bessa-Luís, dizendo que da Agustina ninguém jamais me separaria. Deram-me então um papel com a lista das minhas infracções, para eu assinar. O que fiz orgulhosamente. Mas, como dizia o outro, orgulhosamente só. Quase todos os que ali chegavam vinham num tal estado de desamparo existencial que aceitavam todas as ordens, sobretudo se enroladas naquele tom melífluo que pretende infantilizar o outro: "Agora a roupinha, senhor Silva." Conheço mesmo um caso em que a uma senhora já de idade pretendiam tirar os dentes que lhes pareciam postiços. E não eram.
Não sei quem elaborou regulamento tão estúpido e quais as fundamentações para ele (medo dos roubos?). Imagine apenas, meu caro amigo, aquelas pessoas que sem óculos não vêem um palmo adiante do nariz e entram numa bruma espessa. Imagine ainda que elas também entram num espaço sem tempo, em que já quase não sabem se é noite se é dia, no mundo dos vivos. O desespero é total. Antes deixar que nos roubem o relógio do que ficar nesse limbo da existência em que os séculos se confundem.
Segundo ponto. É suposto que as pessoas que ali entram sejam levadas a diversas modalidades de exames nos mais diversos andares. São então conduzidas por corredores extremamente frios e sentem que pelo baixo custo de uma taxa moderadora lhes deram por extra uma excursão à Lapónia. As bandeiras das janelas estão abertas certamente no cumprimento daquele princípio que qualquer dona de casa aplica no seu lar: é preciso arejar a casa. Mas aquelas viagens no gelo, à espera de elevadores que avariam dia sim, dia não, têm algo de uma verdadeira aventura.
Há outro aspecto interessante: é o serviço que envia que fica encarregado de ir buscar a pessoa na sua maca. Por motivos de engarrafamento, por vezes é preciso esperar cerca de uma hora que apareçam. Os menos resistentes acabarão por morrer. Outros apanharão broncopneumonias. Apenas alguns, num vigoroso princípio de selecção natural, conseguem sobreviver. E então logram aplicar o princípio nietzschiano: o que não me mata dá-me forças.
Talvez haja vantagens que eu ignore nesta alternância violenta entre o calor das salas e o frio intenso dos corredores. Se assim for, Santa Maria cumpre na perfeição a sua tarefa. Não é a taxa moderadora, mas o frio moderador. Neste país insuportavelmente frio, onde os estrangeiros pensam que "frio" é uma palavra desconhecida."
in Jornal Público, 29 de Dezembro de 2005
"O desencantamento com os cuidados de saúde no final do séc. XX também afectou profundamente o curso da história da medicina. Críticos da medicina moderna e tecnocrata atacaram as prerrogativas de uma elite médica profissional, ao mesmo tempo que condenavam o carácter desumano do tratamento médico moderno."
Desencantamento, tecnocracia, elitismo e desumanização. Mais que quatro ideias-chave expressas por Mary Lindemann em Medicina e sociedade no início da Europa Moderna, aquelas são quatro realidades das enfermarias dos nossos hospitais. E vem aí a nossa vez, não de adoecer (também chegará!), mas de curar. A nós compete recolocar o doente no centro da profissão médica, um lugar agora ocupado pela doença, e assim humanizar os cuidados de saúde.
Este blog é criado com o objectivo de facilitar a partilha de informação, ideias, experiências, opiniões, leituras (artigos, crónicas, livros...) e tudo aquilo que sintam que nos possa ajudar a, efectivamente, construir uma geração médica mais próxima do doente. Colabora!
Eu começo hoje, com a publicação de uma crónica do Eduardo Prado Coelho, antigo professor universitário, recentemente falecido: Memórias de Santa Maria (2).
"Meu caro Correia de Campos, amigo e camarada:
Continuemos a nossa conversa. O tal corredor à esquerda de que já falei conduzia ao Serviço de Observações, que não me deixou boas recordações. Há uma espécie de princípio: "Ó vós que aqui chegais abandonai tudo o que pertencia ao mundo." Um despojamento total. Tire a roupa: anotam peça a peça e amarrotam-na cuidadosamente em sacos que não têm pegas, para dar ao acompanhante que espera lá fora. Depois disseram: "Tire os óculos." Respondi: "Não tiro." A seguir o relógio. E segundo o regulamento, deveria entregar o telemóvel. Recusei. Por fim, o livro que levava comigo. Segundo o regulamento, não se pode ter livros! É assim que pretendem fomentar a leitura? Recusei entregar os Doidos e Amantes da Agustina Bessa-Luís, dizendo que da Agustina ninguém jamais me separaria. Deram-me então um papel com a lista das minhas infracções, para eu assinar. O que fiz orgulhosamente. Mas, como dizia o outro, orgulhosamente só. Quase todos os que ali chegavam vinham num tal estado de desamparo existencial que aceitavam todas as ordens, sobretudo se enroladas naquele tom melífluo que pretende infantilizar o outro: "Agora a roupinha, senhor Silva." Conheço mesmo um caso em que a uma senhora já de idade pretendiam tirar os dentes que lhes pareciam postiços. E não eram.
Não sei quem elaborou regulamento tão estúpido e quais as fundamentações para ele (medo dos roubos?). Imagine apenas, meu caro amigo, aquelas pessoas que sem óculos não vêem um palmo adiante do nariz e entram numa bruma espessa. Imagine ainda que elas também entram num espaço sem tempo, em que já quase não sabem se é noite se é dia, no mundo dos vivos. O desespero é total. Antes deixar que nos roubem o relógio do que ficar nesse limbo da existência em que os séculos se confundem.
Segundo ponto. É suposto que as pessoas que ali entram sejam levadas a diversas modalidades de exames nos mais diversos andares. São então conduzidas por corredores extremamente frios e sentem que pelo baixo custo de uma taxa moderadora lhes deram por extra uma excursão à Lapónia. As bandeiras das janelas estão abertas certamente no cumprimento daquele princípio que qualquer dona de casa aplica no seu lar: é preciso arejar a casa. Mas aquelas viagens no gelo, à espera de elevadores que avariam dia sim, dia não, têm algo de uma verdadeira aventura.
Há outro aspecto interessante: é o serviço que envia que fica encarregado de ir buscar a pessoa na sua maca. Por motivos de engarrafamento, por vezes é preciso esperar cerca de uma hora que apareçam. Os menos resistentes acabarão por morrer. Outros apanharão broncopneumonias. Apenas alguns, num vigoroso princípio de selecção natural, conseguem sobreviver. E então logram aplicar o princípio nietzschiano: o que não me mata dá-me forças.
Talvez haja vantagens que eu ignore nesta alternância violenta entre o calor das salas e o frio intenso dos corredores. Se assim for, Santa Maria cumpre na perfeição a sua tarefa. Não é a taxa moderadora, mas o frio moderador. Neste país insuportavelmente frio, onde os estrangeiros pensam que "frio" é uma palavra desconhecida."
in Jornal Público, 29 de Dezembro de 2005
Nenhum comentário:
Postar um comentário